UM DEDO DE PROSA...

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A PROMESSA

 

 

Era festa de Santos Reis no pequeno distrito de Água Boa, fincado no topo de uma verde e calma colina donde se tem, até hoje, uma vista alegre.

A cidadezinha calma, serena e tranqüila, atraía todos, de diversos cantos, para as costumeiras homenagens aos Três Reis Magos, padroeiros do lugar.

Feito uma moça bonita, que se apronta inteira em dia de festa para ver moço bonito, preparou-se toda, com fitas e cores para receber gente de tudo quanto é canto, que cismou de encontrar aqui o Menino de Belém.

Militante ainda jovem na Igreja, eu aguardava, no interior da nave, por um grupo de jovens que viria preparar, comigo, a liturgia de uma das costumeiras missas da tradicional festa.

Sentado num dos últimos bancos, olhava, displicentemente, o movimento dos transeuntes lá embaixo, na praça. Meu olhar se perdia no ir e vir dos fiéis que se aglomeravam diante da capela.

De repente, adentra a igreja, um senhor magrinho, de testa franzida pela difícil lida na roça, entre apressado e preocupado, caminha pelo corredor central, aproxima-se do altar, tira seu chapéu de massa, apóia-o sobre o peito, dobra os joelhos e faz uma piedosa reverência diante do altar principal.

Vendo-me ali, aproximou-se e disse-me:

__ Óia, esse minino. Eu queria pagar uma promessa que fiz pra Santos Reis!

Era costume pagar promessas, depositando aos pés do santo milagreiro, algumas cédulas de dinheiro, como se o santo cobrasse pelo serviço, gesto que ainda hoje perdura, no intuito de agradecer alguma bênção.

__O senhor fique à vontade __ orientei-lhe.

Ele procurou com os olhos as imagens dos Três Reis Magos. Percorreu com suas cansadas pupilas todos os altares, até parar sobre o nicho onde, certamente, estariam os Santos Reis. Não os encontrou. Uma ruga de preocupação se desenhou na sua testa, marcada pela dureza da vida e pelos sacrifícios cotidianos.

Solícito e, percebendo a aflição daquela pobre alma, informei-lhe que as imagens dos Santos Reis não se encontravam mais no interior da igreja, pois foram roubadas a algum tempo por algum meliante que nada entende de promessas nem da boa fé dessa gente.

A palidez daquele senhor me comoveu. Ele, por sua vez, indignado, indagou:

__Ora, como pagarei minha promessa se os santos pra quem eu prometi não estão mais aí?

Expliquei-lhe, calmamente, que poderia deixar o dinheiro diante de qualquer altar, afinal, onde quer que ele depositasse a sua doação, ela serviria mesmo era para ajudar nas obras da Igreja.

Ele continuava irredutível e eu percebi o seu desapontamento. Era como se ele tivesse que pagar uma dívida à outra pessoa com quem não tinha feito nenhum trato. Sua consciência não estava tranqüila.

Tentando resolver aquele impasse entre o fiel e o santo (que por sinal era um trio), e querendo promover a paz e a concórdia entre Deus e o homem, disse-lhe:

__ Como o senhor deve ter percebido, as imagens dos Santos Reis, a quem o senhor prometeu retribuir alguma graça, não estão mais aí. Foram levadas sem permissão do padre, de Deus e muito menos delas. Isso, porém, não impede que o senhor pague a sua promessa. Pode fazê-lo diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus. Afinal, Jesus é maior do que qualquer outro santo. É o chefe de todos. E é Ele o grande detentor de todas as graças.

Ainda assim, sem se convencer, ele retrucou:

__Eu não fiz promessa pra Nosso Senhor. Foi pra Santos Reis.

Um dos dons que Deus se esqueceu de me dar foi a paciência. Mas naquele dia, Deus apiedou-se de mim e abarrotou-me, da cabeça aos pés, de uma aura de calma e de harmonia tamanhas que nem se o teto desabasse inteiro sobre mim, tiraria da minha face, aquela feição de santinho de igreja barroca.

A testa daquele senhor franziu-se repetidas vezes. Ficou ali parado por alguns instantes. Depois de alguns intermináveis minutos, ele se deu por vencido, mas não convencido. Percebi pelo semblante carregado o seu desapontamento.

Foi lá, e, meio contrariado, deixou sua esmola aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus.

 

Extraído de “CONTOS DE FÁBIO”, Fábio Gonçalves

Escritor e poeta

http://artesdefabio.blogspot.com